Porque acordo cansado/a todos os dias?

Há uma consciência crescente de que o sono é essencial para o nosso bem-estar e para nossa saúde física e mental. Já dizia Miguel de Cervantes em Dom Quixote, em 1605: “…abençoado seja aquele que inventou o sono!...”

Um bom dia começa na noite anterior. Nos últimos anos, diversos estudos epidemiológicos e experimentais têm demonstrado o que acontece no nosso organismo, se não dormirmos adequadamente. Algumas das possíveis consequências diurnas são o cansaço, a fadiga e sonolência. O cansaço é percebido como um estado de falta de energia física ou mental, podendo ser um sinal de sono insuficiente em quantidade e/ou qualidade, ou seja, um sinal de dormir pouco e/ou dormir mal.

É consensual que a duração do sono, no mínimo de sete horas por noite, é essencial para uma boa saúde. A privação crónica de sono voluntária, associada a fatores do estilo de vida, com erros de hábitos de sono, com horários irregulares ou tardios e redução do tempo total de sono, é a causa mais comum de acordar cansado, com perda de energia e, eventualmente, sonolência diurna.

O débito de sono é acumulado através da restrição crónica e mesmo restrições de sono gradualmente acumuladas (por exemplo, a redução de uma hora de sono por noite), podem conduzir a queixas de cansaço e sonolência diurna, sintomas estes aliviados e reversíveis, se a duração do sono nocturno é aumentada.

Por outro lado, há uma percentagem de pessoas que dormem o número de horas suficiente para a sua idade, mas referem acordar mais cansadas do que quando se deitam, devido ao facto de terem um sono de má qualidade. O sono pode não ter a profundidade e a continuidade necessárias para ser um sono reparador, apesar de ter a duração adequada. Alguns distúrbios do sono são caracterizados por despertares de curta duração que não acordam necessariamente a pessoa, mas que condicionam fragmentação do sono, resultando em cansaço e/ou sonolência diurnos. São exemplos os distúrbios respiratórios do sono, como a síndrome de apneia do sono, e os distúrbios do movimento relacionados com o sono, como a perturbação dos movimentos periódicos dos membros e a síndrome das pernas inquietas. No sono desregulado, devido a distúrbios do ritmo circadiano (síndrome de atraso de fase, síndrome de avanço de fase e trabalho por turnos) também podem estar presentes as queixas de cansaço e insónia.

Na insónia, o problema é não dormir e quanto mais a pessoa se tenta forçar a adormecer, mais o sono desaparece. Neste sentido, a ansiedade e a preocupação por não dormir vão ser fatores de manutenção e cronificação da insónia. A insónia pode ser caracterizada por dificuldades em iniciar, manter o sono ou despertar precoce, acompanhada por um comprometimento diurno clinicamente significativo ou sofrimento relacionado com a dificuldade em dormir. Pelo débito nas horas de sono necessárias, as queixas de cansaço e problemas de memória ou concentração, são muito frequentes. A insónia pode ocorrer como uma perturbação do sono independente, ou pode evoluir como um sintoma de uma condição médica, doença psiquiátrica (depressão ou ansiedade) ou outro distúrbio do sono.

Muitas doenças médicas podem-se manifestar com queixas de fadiga, cansaço e perturbação do sono, como por exemplo a fibromialgia. Nesta doença, as queixas de dores generalizadas são características e o sono pode ser não reparador e/ou haver queixas de insónia. No sono pode encontrar-se o padrão alfa-delta muito frequente, mas inespecífico.

O cansaço é comum em doenças endócrinas (hipotiroidismo), neurológicas (epilepsia, doenças neurodegenerativas), infecciosas crónicas, neoplásicas e psiquiátricas (depressão e ansiedade). Geralmente nas doenças médicas a fadiga agrava-se com o decorrer do dia, nas doenças psiquiátricas como a depressão, devido à variação diurna do humor, é comum a pessoa sentir-se mais cansada de manhã e melhor ao fim do dia.

O uso de medicação excessiva como hipnóticos e sedativos ou fármacos que induzem insónia, bem como o consumo excessivo de álcool e drogas podem condicionar sintomas de fadiga e cansaço.

 Um erro cada vez mais frequente, relacionado com os hábitos de sono, é a utilização de dispositivos eletrónicos antes de dormir e no período nocturno. A componente de luz azul emitida, pode influenciar o padrão de sono, afetando o relógio biológico, devido à inibição da produção da hormona que induz e regula o sono, a melatonina. Desta forma, a emissão de luz azul pelas telas dos dispositivos, prejudica o estímulo biológico, podendo atrasar o sono, pela dificuldade em adormecer, e diminuir a sua qualidade. Todos os aparelhos electrónicos devem ser evitados uma a duas horas antes do horário de dormir.

O cansaço é um sintoma complexo, podendo haver vários fatores relacionados com o sono, que contribuem para o seu desenvolvimento.

Valorizar, respeitar e aperfeiçoar o sono noturno é de importância fundamental para uma vida saudável e com qualidade. Devemos dormir bem e o tempo suficiente. Uma boa higiene do sono pode evitar comportamentos e condições incompatíveis com o sono reparador e deve respeitar hábitos regulares de sono e vigília, sem grandes variações.

Joana Serra

Psiquiatra. Centro de Medicina do Sono do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

Artigo do livro "Bons Sonhos", uma iniciativa da Associação Portuguesa de Sono, em parceria com a Philips, que reúne 11 artigos escritos por autores da Medicina do Sono portuguesa.

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